20 dezembro 2006

Conto de Natal

Estava gelada, o frio cortava como lâminas muito finas tornando mais fundas as rugas....
Horas de espera e não acontecia nada. Ficaria mais um bocado a ver o que dava, também para onde iria?
Os carros passavam a toda a velocidade arriscando nos cruzamentos mais difíceis, não era normal. O Natal põe as pessoas malucas, anda tudo a correr, nem olham para o lado esquerdo do semáforo onde como sempre ela estava.
Tinha vestido uma saia mais descida e o casaco era de pele e estava apertado até ao pescoço. Estava muito frio e sentia que devia estar mais discreta do que habitualmente, não sabia muito bem porquê mas o Natal era uma época que lhe trazia muitas recordações, algumas boas e muitas más mas não queria saber, nem queria pensar nisso, só não se sentia bem a ser olhada pelas senhoras de alto. Já não sentia vergonha de estar ali à espera do próximo cliente a ser olhada do lado de dentro do carro, só sentia uma raiva muito grande em não conseguir gritar a sua tristeza.
Os olhos estavam abertos e não via o carro que já tinha dado duas voltas ao quarteirão, voltou-se e lá estava ele a abrir o vidro e a perguntar o banal. Era novo, novo demais para ali estar, respondeu automaticamente e viu a porta do carro a abrir-se. Entrou, estava quente dentro do carro e sentiu um abandono no corpo que não era habitual. Seguiram rua abaixo e entraram na pensão a correr que o frio não dava tréguas.
Despiu-se sem tirar os olhos do rapaz, era tão novo, que faria ali na noite de Natal? Não teria família? Sempre eram os velhos que apareciam nestas ocasiões mais especiais, nunca um quase miúdo. Já não percebia nada, as coisas tinham mudado tanto nos últimos anos, sabia que estava para acabar a sua vida de rua, cada vez os clientes eram menos.
Perguntou-lhe como se chamava enquanto dava os derradeiros retoques. Também o seu nome de trabalho não era o verdadeiro como queria ouvir da boca de alguém que amanhã não a conheceria, o verdadeiro nome? Mas insistiu, como se chama? E ouviu o que lhe pareceu ser o nome dele, tinha mesmo cara de Carlos, não estava a mentir.
Foi rápido o esgotamento. Como sempre acabou depressa o que lhe agradava. Eram muitos anos a estudar a forma mais rápida de os tirar de cima. Deste nem conseguia ter nojo, era só um rapaz que não tinha para onde ir.
Estava calor no quarto e o corpo dele ali deitado ao seu lado trazia recordações. Fechou os olhos. O rapaz começara a falar e foi com prazer ouviu o seu som que sentiu as palavras a saírem-lhe da boca. Falavam, o que não era natural e nem se lembrava quando isso lhe tinha acontecido antes, deveria ter sido há muito tempo. A conversa estava a ser agradável, sentia que o conhecia desde sempre, ou seriam simplesmente demasiados anos a ouvir o mesmo? Estava bem ali e começou a pensar como seria não ter de ir para a rua outra vez. O frio, a espera, tudo o que não queria estavam para acontecer, era só uma questão de minutos.
O rapaz fez um movimento e ela, envergonhada, atirou um braço para cima dele num misto de abraço e murro, ele agarrou-lhe na mão e fingiu olhar as unhas que estavam lascadas. Devia tratar-se mais, disse, ao que ela respondeu qualquer coisa sem grande importância mas que deu espaço para se chegar. Continuavam a falar de coisas que pouco lhe interessavam em boa verdade mas que lhe permitiam ir dizendo de si nos intervalos da respiração dele.
Era hora de sair, deviam estar distraídos com a festa de Natal senão já lhe teriam batido à porta várias vezes que o quarto era para uma hora e já estavam para ali há mais de três, mas não estavam. O som de algo metálico a bater na madeira soou e os dois estremeceram. O rapaz deu um salto e agarrou nas calças que estavam ao fundo da cama, sem querer, sem ter tempo de pensar ela disse:
- Não vás eu pago o quarto desta vez e ficamos para aqui a conversar até de manhã, anda, deixa-me agarrar-me a ti e sonhar, hoje é Natal.

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05 dezembro 2006

Conto de Natal


As redes enfiavam-se pelos dedos dentro, cortados que estavam pelo frio e pela água. Tinha muito frio e sentia os ossos molhados. As dores nas mãos faziam-no esquecer as dos joelhos encostados havia horas à amura baixa e lascada.
Estava a acabar o seu dia de trabalho e ainda só eram nove horas, saiu da cama às três da manhã, vestiu os casacos mais grossos que tinha e calçou as botas até à cintura sobre as calças de flanela. O caminho até à sua pequena bateira foi rápido, já nem dava por ele. A força do hábito a sonolência e a monotonia faziam-no acordar, acordar mesmo já no meio do rio. Eram movimentos automáticos, largar amarras pegar nos remos e rumar ao pesqueiro certo para o dia. Tudo era tristemente repetido.
Tinha largado as redes quatro vezes e o que via no fundo do barco era prenúncio de pouco dinheiro. Nunca tinha sido como agora, não havia peixe no rio. Ou teria sido? Também houve dias no passado em que não se pescava, não saía nada nas redes mas agora custava mais. Já não tinha ânimo para ir apanhar meio quilo de isco que se vendia mais ou menos bem para completar o dia. Estava cansado. As mãos doíam o corpo doía e já não tinha forças para encontrar as alternativas do passado.
Olhou para o peixe apanhado e não era mais do que dois quilos. Quanto valeria? Uma miséria, se não o comesse ele que fome não lhe faltava.
Deitou a mão à sacola e tirou um naco de pão e um rojão. Tão pouca carne e tanto pão. Foi com custo que engoliu algumas dentadas à força de vinho, zurrapa vinda sabe-se lá de onde que o seu já não o fazia há muito.
Cada vez tudo estava pior. Ele a pesca o pão o vinho, já nem sabia muito bem porque continuava a fazer tudo aquilo. Ir à pesca? Para quê? Acordar tão cedo para quê? Não sentia qualquer vontade de estar ali, sozinho e cheio de frio. E as mãos que lhe doíam tanto.
Desde que a mulher lhe morrera que tudo estava mais difícil. Que porra, nunca tinham tido filhos só os dois, agora até podiam ser um alívio, ou não, vá lá um homem saber. Sentia-se velho e a vida não o poupava.
Lançou as redes mais uma vez, seria só mais esta vez e talvez apanhasse que vender, mais um dia descansado, amanhã logo se veria. Lançou e rodopiou o barco, depois levantou ferro e começou a remar devagar rumo a norte. Podia ter sorte.
Sentiu uma tristeza e um abandono como nunca tinha sentido. Estava a reclamar mais um dia de vida em cada remada mas não sabia muito bem para quê ou porquê. Para que queria mais um dia ou dois ou três? A resposta não lhe vinha à cabeça e as mãos doíam cada vez mais.
Ou era ou não era, parou de remar, o que fosse devia estar nas redes enleadas pela força da maré. Tinha remado para norte mas estava mais a sul, já se via o mar a entrar rio acima. Largou ferro, virou a bateira de proa à corrente e começou a puxar as redes. Estavam leves, pouco ou nada traziam mas já sabia que era assim. Mas para que queria ele mais um dia? Continuava sem razão para estar ali.
Tinha a rede quase toda recolhida e nada, mas também não encontrava um motivo para querer apanhar um bom peixe, subitamente a rede pesou, devia ser grande. Fechou os olhos e puxou com mais força. Na escuridão dos olhos fechados viu o rosto da mulher que o deixara, era ela quando se casaram, bonita, linda de fazer inveja.
Que raio, como andava com a cabeça, era dia de Natal, por isso é que não andava ninguém na faina.
O peixe debatia-se com força, tinha peso, puxou mais uma vez e outra e outra só parando quando viu um robalo e como era grande, tinha mais de meia dúzia de quilos e que bonito era.
Como ela gostava de robalos, mais dos apanhar e vender do que de os comer, não se podia comer peixe tão caro que o dinheiro fazia falta.
Sentou-se no barco com o peixe nos braços, fechou os olhos para a ver mais uma vez e sentiu os olhos molhados. Esteve assim algum tempo e só um abanão mais forte o fez acordar. Cada vez tinha mais frio, vestiu outro casaco e calçou umas luvas velhas a ver se as dores aliviavam, ia para casa.
Começou a remar devagar sob o olhar do peixe que saltava no fundo da bateira, só mais um pouco, tinha de remar com força, com toda a força que lhe restava.
Como estava cansado. Parou de remar, não ia remar mais.
Sentou-se à proa bem lá no fundo onde não havia água, ajeitou-se e cobriu melhor o pescoço, agarrou no peixe e apertou-o contra o peito.
Ela ia gostar da prenda, sempre gostara de robalos e era Natal que melhor altura para aparecer com um mimo daqueles?
As ondas já batiam com força e subiam pela popa enquanto a bateira redopiava em voltas perdidas, a água que lhe batia na cara tinha sabor a sal, não via muito bem mas sabia que era mar.
Ela estava à sua espera, ia para casa e levava um presente de Natal.

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